Por Paulo Niederle e Sergio Schneider, para a Coluna do GEPAD

Apesar da enorme iniquidade no acesso à terra e aos recursos públicos, nos últimos 50 anos o Brasil criou um modelo de desenvolvimento agrário que, até agora, foi capaz de preservar a agricultura familiar. Mais do que isso, nas últimas décadas este segmento social se tornou a base do abastecimento alimentar de uma parcela importante do mercado interno de alimentos, cumprindo assim um papel decisivo no controle da inflação, na redução do êxodo rural, na diminuição dos níveis de pobreza e na revalorização dos espaços rurais. Isso tudo foi feito dentro do capitalismo, e não significa que esteja tudo bem.

A Rússia, por seu turno, seguiu um caminho totalmente diferente e neste ano de 2017, no centenário da Revolucão Comunista, não tem muito a celebrar quando o assunto é agricultura familiar e campesinato. Neste país, os pequenos produtores são hoje em dia uma categoria social insignificante do ponto de vista social e econômico, apesar de no início da Revolução terem sido a classe social mais numerosa e decisiva.  Vale notar que o processo russo inspirou gerações de políticos e acadêmicos em todo o mundo.

Tanto num caso como noutro, é claro que não é adequado fazer amplas generalizações.  A Rússia ainda guarda uma diversidade significativa nos seus espaços rurais. Não obstante, a região agrícola mais desenvolvida do país, ao sul, na divisa com a Ucrânia e a Geórgia, onde estão alguns dos melhores solos do mundo, pode-se encontrar uma situação emblemática dos rumos tomados pelas transformações agrárias ao longo do século XX,  que pode ajudar a compreender o que vem ocorrendo não apenas na Rússia, mas nas economias pós-soviéticas de modo geral.

Entre 1928-1933, a Rússia promoveu um amplo processo de coletivização da terra, criando os kolkhozy(fazendas cooperativas controladas localmente pelos trabalhadores rurais) e os sovkhozy (fazendas controladas centralmente pelo Estado). Este sistema prevaleceu até o abrupto processo de descoletivização promovido pelo Governo de Boris Yeltsin, o qual gerou uma crise de referenciais para a população rural russa. De uma hora para a outra, milhões de trabalhadores foram jogados em um novo sistema agrário. As terras foram divididas. Cada família passou a ter o direito formal a um lote (algo em torno de 5 hectares) e, junto com o título da terra, um sincero ‘boa sorte’ do novo governo liberal – ou seja, nenhuma estrutura produtiva, crédito ou assistência técnica.

Não foi surpresa que, logo após a descoletivização, tanto a área quanto a produção agrícolas caíram consideravelmente. Ao mesmo tempo, o preço da terra despencou. Muitos trabalhadores rurais simplesmente abandonaram seus lotes e migraram para as cidades. Outros venderam suas cotas por valores irrisórios. E foi a partir disso se formou um novo tipo de segmento social no meio rural russo. Famílias que haviam acumulado algum capital durante o período socialista começaram a adquirir essas terras. Logo surgiram novas empresas agrícolas, em geral formadas por indivíduos posicionados na elite dos kolkhozys e sovkhozys, com bons contatos políticos no Kremlin, que acumularam terra e, a partir daí, reuniram condições para iniciar um lento (e às vezes caótico) processo de modernização agrícola. Hoje, no interior dessas empresas, tratores e colheitadeiras da era soviética agora convivem com novos modelos importados do ocidente.

Por sua vez, os antigos trabalhadores dos kolkhozys que não aceitaram vender suas terras tornaram-se “sócios” das empresas. Na verdade, eles alugam suas terras (cotas) por preços irrisórios que, em geral, são remunerados em produto (trigo, milho, girasol). Assim, ao invés de uma agricultura familiar distribuída pelo espaço rural, a áreas dos antigos moradores e trabalhadores do kolkhozys passaram a ser denominados de vilas rurais onde as unidades domésticas (households) se tornaram local de moradia e produção de subsistência. Criou-se um tipo de agricultura peri-urbana com gêneros alimentícios básicos (batata, verduras, legumes, galinhas) que garantem segurança alimentar destas unidades. Mas as pressões com relação a este sistema também aumentam. A título de exemplo, a produção de porcos – fundamental na dieta alimentar dos russos – recentemente foi proibida nestes households. A justificativa do Ministério da Agricultura foi a de evitar a disseminação de doenças, mas a pressão das empresas agroindustriais também é referida como motivo pelos habitantes locais.

A agricultura familiar ou camponesa tornou-se uma exceção na Rússia. Hoje, na região de Krasnodar, seis empresas controlam toda a área e a produção de grãos. Uma das menores ocupa pouco mais de 2,5 mil hectares, sendo que a metade deste total é arrendada dos cotistas ex-trabalhadores das fazendas coletivas. Com isso, a área que outrora ocupava cerca de 250 pessoas, hoje abriga cerca de 50 trabalhadores rurais. A mecanização avança e, junto com ela, vêm seus efeitos.

De modo geral, a população local tem uma avaliação positiva do papel destes empresários, que assumem riscos e desempenham um papel fundamental para o abastecimento do país e a geração de superávits exportáveis. Os produtos são exportados para países como Turquia, Grécia e outros vizinhos da Ásia.

Depois de alguma pesquisa de campo e conversa com especialistas, descobre-se que estes emergentes fazendeiros, que se auto definem como “médios empresários rurais”, estão à mercê de algo muito mais avassalador. Com uma estrutura tecnológica ainda bastante precária se comparada à dos países ocidentais, eles têm sido desafiados pela expansão de enormes conglomerados agrários – as agro-holdings – que, sustentados pelo Estado, mobilizam capital financeiro de investidores diversos e criam enormes fazendas agrícolas que podem ter mais de 600 mil hectares. Assim como em outros países do mundo que estão vivenciando a corrida global pela apropriação da terra (land grabbing), esta começa a ser a nova face do capitalismo agrário Russo da era pós-soviética.

Junto com isso, há uma elevação do preço da terra, que atualmente alcança 10 mil reais por hectare. Este valor ainda é muito inferior à maioria das áreas altamente produtivas no Brasil. Com efeito, atrai os olhares de investidores de todo o mundo. A estrangeirização da propriedade somente não é um fato consumado como em outros países, incluindo o Brasil, porque o Estado russo ainda faz questão de manter controle econômico e político sobre seu território e a exploração dos recursos naturais.

Se, por um lado, este processo de modernização tardia tem elevado os níveis de produção e produtividade na agricultura, por outro, tem ocasionado uma profunda crise social. As comunidades rurais perdem continuamente pessoas, sobretudo os jovens. Há um processo abrupto de envelhecimento e desagrarização. Cada vez mais, as vilas convivem com os escombros das antigas estruturas dos kolkhozys. Bibliotecas, escolas, centros de cultura, campos de futebol vão gradativamente cedendo espaço na paisagem rural. Junto com isso, um rápido processo de individualização. As celebrações comunitárias se tornaram extremamente raras. As festas são organizadas e realizadas pelas empresas. Junto com o novo capitalismo agrário emergiu uma espécie de anomia social. Não é em vão que muitos habitantes destas vilas, embora reconheçam os avanços que o capitalismo lhes possibilitou em termos de acesso a determinados bens materiais, vêem com nostalgia a vida social e comunitária do período soviético, em que até mesmo as pequenas vilas como Privolnaya (5 mil habitantes) lotavam teatros com mais de 600 lugares.

Nestes recônditos lugares da Rússia pós-soviética, a pergunta que o tempo inteiro ronda a cabeça de um sociólogo rural brasileiro é porque, afinal de contas, estes trabalhadores não se reorganizam coletivamente, criam cooperativas, ocupam suas áreas, tornam-se agricultores familiares como no Brasil. A verdade é que esta já não é uma opção.

Talvez, antes da Revolução de 1917, como alguns autores e políticos defenderam, esta tivesse sido uma via mais interessante. Mas, o processo de coletivização que foi colocado em marcha a partir da década de 1920 sob a batuta de Stalin, seguido da descoletivização descoordenada com o fim da era soviética na era Yeltsin, desarticularam a economia campesina de outrora e sua transformação em agricultura familiar.

De algum modo, o próprio modelo soviético introduziu na cabeça dos trabalhadores a crença na inviabilidade da produção camponesa de pequena escala. Neste sentido, o processo russo guarda similaridades com o modelo capitalista americano. Com efeito, quando perguntados sobre o tamanho mínimo que uma unidade agrícola deveria ter para poder sobreviver às atuais condições, os agricultores falam que o ideal seria algo entre 200 ou menos 500 hectares. Isto em uma das regiões – é necessário lembrar – com os solos mais produtivos do mundo. Estes tamanhos fariam os agricultores familiares do Brasil com 10, 20, 50 hectares ficar estarrecidos.

Outro problema é a lógica de ocupação centralizada do espaço rural. A formação das vilas afastou as pessoas das suas terras. Ninguém pensa na possibilidade de construir uma casa em cima de 5 hectares que dista vários quilômetros da vila onde se encontra, ainda, algumas estruturas herdadas dos antigos kolkhozys (calefação, hospital, escola, centro comunitário). Neste caso, acreditam ser melhor alugar para as empresas ou para as corporações.  Finalmente, a cooperação agrícola tornou-se uma alternativa quase inexistente, seja pela herança cultural que se criou durante e após o período soviético – a passagem de uma coletivização centralizada para uma individualização caótica –, seja pela dificuldade em estabelecer este tipo de lógica quando empresas e corporações já dominam e criam mecanismos para evitar o sucesso de qualquer outro tipo de modelo produtivo.

Sobre o futuro da Rússia rural: difícil prever. Mas agricultores e especialistas acreditam no aprofundamento do modelo corporativo, inclusive com a crise das médias empresas rurais. Enquanto aguardamos o futuro, podemos aprender com a história. Preservar a agricultura familiar do Brasil é estratégico.

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GEPAD é um grupo de pesquisa sobre agricultura familiar e desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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